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            Aperto um botão daqui, outro dali e crio um novo eu. Controlo a minha imagem, os meus poderes, me invento. A realidade está sob o meu controle e dou asas para a minha imaginação, com os recursos de um jogo. Posso caminhar, voar, morrer e renascer. Um mundo de escolhas, mas sem muito compromisso, pois posso criar uma história a qualquer momento. Insistir ou desistir é uma questão para um clique, sem nenhuma consequência. Posso passar horas na realidade virtual, esquecer da minha fome, comer qualquer coisa, perder o sono, enfim, posso esquecer o mundo da realidade física.

            Na mesa ao lado, vejo um romance abandonado[1]. Comecei a lê-lo há mais tempo, mas não consigo terminá-lo. É sobre a guerra dos Balcãs. Um livro com muito lirismo e muita realidade. Uma história ficcional mesclada com a história vivida pelo autor. Tema árduo. Logo no início, a morte do avô. Um avô que era muito presente na vida do neto, que encantou a sua infância com passes de mágica e com muita fantasia. E depois a guerra. Mexeu comigo imaginar, ao lado do autor, o desmoronamento da sua cidade, das suas certezas e das suas garantias de forma tão abrupta. A narrativa surge como uma memória borrada, que vem e volta, porém tentando costurar os sentimentos de dor e ausência com outros de amor. Preciso acabar de ler, até mesmo para saber se ele encontra ou não o seu amor infantil perdido no meio da guerra.

            No outro canto da mesa, estão os boletos. A vida real me chama: lista de supermercado, livros de estudo, relação de exames e consultas a serem feitos, além da pilha abstrata: preocupação com os filhos, com os pais, questões sobre a carreira, ansiedade, insônia, medo, performance, sexo, casamento, corpo, peso, inglês, família, produção, resultado, esgotamento. Não vou tomar banho. Hoje eu não vou trabalhar. Vou me desligar por um tempo. Não quero falar com ninguém. Pego o celular. Entro no Instagram e todas aquelas receitas, padrões e tudo mais que é exposto ali me sufoca. Resolvo entrar na galeria virtual, numa exposição de um amigo que não vejo há tempos, mas que mandou um convite online. Vou passear por lá. Sem som, sem letras. Paro diante de cada obra e sinto a produção da inteligência artificial. Não viajo para lugar nenhum, mas pelo menos domino meus passos pelos botões do computador. Respiro. Está tudo sob controle.

[1] “Como o Soldado Conserta o Microfone” de Sasa Stanisic

Johanna Homann

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Join the discussion 4 Comments

  • Ermelinda disse:

    Será que enfim conseguiremos controlar algo nessa vida? Ou será que, assim como na vida real, estaremos nos enganando, nos contando uma história de que o mundo virtual estará sob o controle dos botões do nosso computador?

    • Acredito que esse controle que a gente busca é uma tentativa de exercermos um papel poderoso demais. Na verdade, a sabedoria mora em não tentar controlar nada. Realizar, mas reconhecer a volatilidade presente em tudo. Mas fica a brincadeira!

  • Henrique disse:

    Que texto gostoso de ler!!! Inspirador! Interessante essa galeria virtual aí do seu amigo “que não vê a tempos”…
    Depois gostaria de conhecer melhor!!! 😂😂😂

    • Vale a pena conhecer a galeria! Vou trazer aqui o endereço e te convidar a ter essa experiência. Depois, precisamos retomar os encontros presenciais com os amigos queridos!

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