0
All Posts By

Johanna Homann

Tudo sob controle

By Crônica4 Comments

            Aperto um botão daqui, outro dali e crio um novo eu. Controlo a minha imagem, os meus poderes, me invento. A realidade está sob o meu controle e dou asas para a minha imaginação, com os recursos de um jogo. Posso caminhar, voar, morrer e renascer. Um mundo de escolhas, mas sem muito compromisso, pois posso criar uma história a qualquer momento. Insistir ou desistir é uma questão para um clique, sem nenhuma consequência. Posso passar horas na realidade virtual, esquecer da minha fome, comer qualquer coisa, perder o sono, enfim, posso esquecer o mundo da realidade física.

            Na mesa ao lado, vejo um romance abandonado[1]. Comecei a lê-lo há mais tempo, mas não consigo terminá-lo. É sobre a guerra dos Balcãs. Um livro com muito lirismo e muita realidade. Uma história ficcional mesclada com a história vivida pelo autor. Tema árduo. Logo no início, a morte do avô. Um avô que era muito presente na vida do neto, que encantou a sua infância com passes de mágica e com muita fantasia. E depois a guerra. Mexeu comigo imaginar, ao lado do autor, o desmoronamento da sua cidade, das suas certezas e das suas garantias de forma tão abrupta. A narrativa surge como uma memória borrada, que vem e volta, porém tentando costurar os sentimentos de dor e ausência com outros de amor. Preciso acabar de ler, até mesmo para saber se ele encontra ou não o seu amor infantil perdido no meio da guerra.

            No outro canto da mesa, estão os boletos. A vida real me chama: lista de supermercado, livros de estudo, relação de exames e consultas a serem feitos, além da pilha abstrata: preocupação com os filhos, com os pais, questões sobre a carreira, ansiedade, insônia, medo, performance, sexo, casamento, corpo, peso, inglês, família, produção, resultado, esgotamento. Não vou tomar banho. Hoje eu não vou trabalhar. Vou me desligar por um tempo. Não quero falar com ninguém. Pego o celular. Entro no Instagram e todas aquelas receitas, padrões e tudo mais que é exposto ali me sufoca. Resolvo entrar na galeria virtual, numa exposição de um amigo que não vejo há tempos, mas que mandou um convite online. Vou passear por lá. Sem som, sem letras. Paro diante de cada obra e sinto a produção da inteligência artificial. Não viajo para lugar nenhum, mas pelo menos domino meus passos pelos botões do computador. Respiro. Está tudo sob controle.

[1] “Como o Soldado Conserta o Microfone” de Sasa Stanisic

Lembranças de um homem gentil

By Crônica2 Comments

Lembranças de um homem gentil

 

Há muitos anos, acredito que eu era pré-adolescente ainda, li uma entrevista no jornal Estado de Minas com uma senhora que ia completar cem anos e casada há mais de 75 anos. Depois de várias perguntas sobre como ela se mantinha bem, o entrevistador quis saber qual era o segredo para manter um casamento tão longo. Deixando de lado todo discurso atual sobre o machismo, ela respondeu que sempre se norteou por duas ações: memória curta e delicadeza. Esta ideia da delicadeza no dia-a-dia vive em mim até hoje. Eu sei, eu sei, muitas pessoas vão se opor a esta posição submissa que a mulher era obrigada a se manter para o bem da família, mas aqui só quero falar de gentileza. Homem gentil ainda não é fruto da nossa época, mesmo havendo tanta luta para que isso seja o mais comum. E embora eu esteja longe de ser delicada 24 horas por dia, ainda mais gastando duas horas por dia no trânsito, e nem sempre recebendo muitas delicadezas por aí, eu tento fazer o meu melhor e não só com o meu marido.

Hoje, uns trinta anos depois desta reportagem, eu me lembrei dela e antes de abrir os olhos pela manhã, tive a nítida sensação que estava deitada na minha cama de infância, que é a mesma que existe na casa de minha mãe, onde ela mora até hoje. Fui puxando da memória detalhes daquele quarto, e aos poucos fui andando pela casa inteira. Passei pela sala, pela copa e cheguei na cozinha. De lá, passei pelo quarto da Maria que morava lá em casa e atravessei a porta azul que dava para um corredor externo que passava ao lado do meu quarto. Nesta época, é bem provável que o cachorro que tínhamos fosse o Toby, uma fera branca que me dava pavor. Mas cheguei no jardim e lá encontrei o S. Zé, o jardineiro desde sempre, um ser puro que só me trazia acolhimento. Magrinho, queixos avantajados, e sempre com um sorriso no rosto. Eu gostava muito das idas do S. Zé lá em casa.

O dia começava com o barulhinho da sua tesoura e depois aquele cheiro de grama cortada. Geralmente, era sábado, e eu sem escola passava um bom tempo ao lado dele conversando. Nunca me interessei em cuidar de plantas, o que até hoje eu não sei fazer, apesar de gostar muito de flores singelas nos cantinhos da minha casa. E ele atenciosamente, parava para me dar atenção. Ele passava a maior parte do tempo de cócoras, bem pertinho da grama e das plantas, e eu me abaixava também para lhe contar histórias, e fazer perguntas. Confesso que andava sempre procurando joaninha, tatu bolinha e taturana e quantas vezes, saía dali misturas perigosas contra meus inimigos feitos das folhas minúsculas do flamboyant, terra, pedrinhas e pedacinhos de grama recém cortados! Tudo era muito explicado para o S. Zé, que às vezes contribuía com algum ingrediente extra.

Um dia, S. Zé foi cortar a grama da casa da minha avó, e não sei bem o motivo, provavelmente era férias, e eu voltei de lá com ele. Fomos para a minha casa de ônibus e me lembro de me sentir bem protegida por ele caminho a fora. Com uma mão, ele me segurava e com a outra, ele segurava a tesoura de jardim, bem embalada em jornal. E competindo com o barulho do ônibus na Avenida Amazonas, eu seguia contando histórias para ele. Ele me fazia sentir uma pessoa bem importante, com grande interesse por tudo que eu falava.

Os anos foram se passando e S. Zé continuava seu trabalho mensal lá em casa. A “birita” dele era sagrada antes do almoço, e mamãe nunca deixava faltar. “É só um copinho pequeno para abrir o apetite”, e esse hábito se manteve até o dia em que fui levar seu copinho, e ele disse que tinha parado de beber. Ele me contou que a D. Geralda, sua esposa, tinha entrado para a Igreja Universal do Reino de Deus, e lá eles falaram que bebida era coisa do diabo. “Ô S. Zé! Não liga pra isso não. Você é um homem trabalhador, não tem problema com a bebida e já traz esse hábito da birita há tantos anos, que não tem problema não. Só uma birita! D. Geralda não vai saber não.” Ele que sempre parava o que estava fazendo para ouvir atentamente quem falava com ele, apoiou a tesoura ao lado dos seu pé, e me disse. “Ô Johanna. Eu sou um homem simples, não tenho muita inteligência não. Geralda começou ir nessa igreja e eu levo ela lá, toda vez que ela quer. Eles falaram lá que televisão, rádio é tudo coisa do diabo, e a gente tem que se livrar de tudo. Lá em casa já não tem mais rádio nem tv. Mas eu fico aqui pensando, não foi Deus que deu a inteligência para o homem para ele construir essas coisas? Mas Geralda ouve o pastor falar e segue as ideias dele. Lá em casa não tem mais.” E assim ele seguiu, sem rádio, sem TV e sem birita. Mas ele seguia sua vida, com o trabalho e com a esposa D. Geralda, que embora fosse 20 anos mais nova, já tinha naquela época uma saúde mais comprometida do que a dele. Ele sempre foi com ela um homem gentil, atencioso, e muito companheiro.

Ele já não vai na minha mãe há tempos, e eu não me lembro qual foi a última vez que vi S. Zé. Mas hoje me deu saudades e liguei para ele. Com 94 anos, lúcido segue sua vida simples ao lado de D. Geralda. No bate-papo ele se lembrou das nossas conversas no jardim e também desse dia que ele me levou para casa de ônibus. Chegou a acrescentar que ele errou o ponto de descer e andamos um pouquinho a mais. E falando em pandemia, da rotina dele, e da saúde, ele me disse que continua magrinho, com alguns probleminhas de saúde, mas que continua dormindo bem. Disse que dorme às 18:00 e acorda às 5:00 para dar os comprimidos da Gê, colocar o colírio na Gê e passar o café para Gê, que cada dia acorda em uma hora diferente. Além da prosa boa, a conversa ficou com gostinho de saudade de um tempo que não volta, mas também em apreciar ao vivo o que a senhora da reportagem havia dito sobre manter um relacionamento tão longamente. O S. Zé e a Gê estão juntos há 60 anos. Ou seja, eu daqui, sem nenhuma bandeira para defender, talvez passe a levantar apenas a da delicadeza, aquela singela feita de atitudes no dia-a-dia. E independente de qual lado cada um esteja em qualquer assunto, eu acredito que é sempre possível se tornar mais delicado.

 

(Esse texto foi escrito no dia 20/08/2020, tempo de pandemia. Hoje é dia 10/12 e acabo de receber a triste notícia da morte do S. Zé. Falei com ele por telefone no dia 21/04/22, dia do seu aniversário. Ele estava muito triste com a morte da D. Geralda em fevereiro de 2022. Disse que tinha perdido a razão de viver. Ainda tive tempo de uma despedida há 3 dias atrás com ele entubado no Hospital João XXIII. E agora ficam as memórias de um homem gentil. Descanse em paz, S. Zé).

o menino e a montanha

O Menino e a Montanha

By Crônica3 Comments

Era uma vez um menino cheio de energia, que tinha como vizinha uma montanha. Ele se sentia muito forte, cheio de coragem, acreditando ser maior do que ela. Do jardim da sua casa sempre muito explorado, ele a olhava garantindo que um dia faria uma visita ao seu topo.

Read More

Sem nada a dizer

By Crônica2 Comments

Sinto que preciso parar de pensar pra as ideias fluírem naturalmente, e mesmo assim meu raciocínio lógico, cheio de razão, quer entrar na frente e achar uma explicação pra tudo que estou escrevendo. Passo então a digitar sem a menor preocupação de ter uma história na cabeça. Tudo isso parece sem sentido para mim, mas mesmo assim me conforta pensar que terei a companhia de alguém até o fim deste texto, mesmo que seja a minha, se ele de fato chegar até o fim.

Read More

Fome de Receitas

By CrônicaNo Comments

O inverno se anuncia pelo vento frio nas esquinas de New York. Chego em casa, penduro as chaves no suporte ao lado da porta, acendo as luzes, e largo a bolsa no banquinho ao lado do sofá. Tudo igual, não fosse o cheiro de pão de queijo que se faz presente. Estranho, mas logo penso que não sou a única mineira morando na Big Apple.

Read More

A Menina dos Óculos

By CrônicaNo Comments

Aos 12 anos ela queria muito usar óculos. Havia chegado aquela idade em que o olhar romântico embaçava, e desconfiou sofrer de algo nas vistas. Na escola, tinha algumas amigas; umas mais próximas do que as outras, mas nenhuma muito íntima. Dançava ao som de música lenta com meninos quando era convidada, começava a ter aulas de orientação sexual na escola e saía das asas da professora primária que ainda era chamada de tia. Foi naquele ano que ela espichou, que mudou sua posição na fila, saindo do terceiro lugar e ficando com as mais altas, lá no final. Seu corpo todo estava mudando e estava doendo.

Read More

Passos com as Mãos

By CrônicaNo Comments

Na semana passada, eu fui tirar sangue para uns exames de controle. Lamentei que a espontaneidade com a qual eu estava acostumada a chegar ao laboratório tinha deixado de existir entre as faces meio cobertas com máscaras. Uma funcionária me orientou a pegar a senha, e, a caminho da máquina, esperei uma senhora atravessar, mantendo a distância que a gente acreditava ser a de segurança. Com a senha, me dirigi às cadeiras, atenta para não escolher uma errada, pois tinha as de idosos, que ainda não me queriam, e as que deveriam permanecer desocupadas por exigências sanitárias. Mal me assentei e fui chamada pela atendente: cumprimentos, nomes e dedos ágeis percorrendo o teclado para entrar com todas as informações. Retornei à cadeira. Logo, logo fui chamada para a coleta de sangue.

Read More

Boa companhia

By Crônica2 Comments

Sentada escrevendo, veio aquela vontade de tomar uma xícara de cappuccino, dessas de cafeteria, grande e com o leite cremoso. Não sei porque, mas vinha sentindo com mais frequência essa vontade. Naquele dia, o céu estava cinza, e parece que quando assim, o ritual de cafeteria é mais bem-vindo. Meus filhos ainda dormiam e o meu marido tinha saído de casa. Aquele silêncio me deixava imersa em minhas ideias, em minha companhia — que para mim, sempre foi boa. Era quarentena. Uma segunda-feira.

Read More

Tecendo uma poda

By Crônica6 Comments

Dali, sentada, tricotava mais uma gola para cumprir a lista de presentes de Natal. Seu marido deitado na cama, cabeça apoiada nos braços dobrados, assistia a mais um programa gravado – dessa vez, Globo Rural. Ela não gosta muito de TV, mas de vez em quando assiste e fica no quarto fazendo outra coisa para não ter a sensação de perda de tempo. Naquele dia, tecia uma trança, e contava os pontos meia e tricô formando o desenho apenas alterando a sequência em cada carreira, com o apoio da agulha auxiliar. Entre uma laçada e outra, ela olhava para a TV e via dicas de poda e os tipos de serrote para executar o serviço. Ela percebeu que há podas extremamente benéficas, que dão força pra planta crescer.

 

Read More