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Lembranças de um homem gentil

 

Há muitos anos, acredito que eu era pré-adolescente ainda, li uma entrevista no jornal Estado de Minas com uma senhora que ia completar cem anos e casada há mais de 75 anos. Depois de várias perguntas sobre como ela se mantinha bem, o entrevistador quis saber qual era o segredo para manter um casamento tão longo. Deixando de lado todo discurso atual sobre o machismo, ela respondeu que sempre se norteou por duas ações: memória curta e delicadeza. Esta ideia da delicadeza no dia-a-dia vive em mim até hoje. Eu sei, eu sei, muitas pessoas vão se opor a esta posição submissa que a mulher era obrigada a se manter para o bem da família, mas aqui só quero falar de gentileza. Homem gentil ainda não é fruto da nossa época, mesmo havendo tanta luta para que isso seja o mais comum. E embora eu esteja longe de ser delicada 24 horas por dia, ainda mais gastando duas horas por dia no trânsito, e nem sempre recebendo muitas delicadezas por aí, eu tento fazer o meu melhor e não só com o meu marido.

Hoje, uns trinta anos depois desta reportagem, eu me lembrei dela e antes de abrir os olhos pela manhã, tive a nítida sensação que estava deitada na minha cama de infância, que é a mesma que existe na casa de minha mãe, onde ela mora até hoje. Fui puxando da memória detalhes daquele quarto, e aos poucos fui andando pela casa inteira. Passei pela sala, pela copa e cheguei na cozinha. De lá, passei pelo quarto da Maria que morava lá em casa e atravessei a porta azul que dava para um corredor externo que passava ao lado do meu quarto. Nesta época, é bem provável que o cachorro que tínhamos fosse o Toby, uma fera branca que me dava pavor. Mas cheguei no jardim e lá encontrei o S. Zé, o jardineiro desde sempre, um ser puro que só me trazia acolhimento. Magrinho, queixos avantajados, e sempre com um sorriso no rosto. Eu gostava muito das idas do S. Zé lá em casa.

O dia começava com o barulhinho da sua tesoura e depois aquele cheiro de grama cortada. Geralmente, era sábado, e eu sem escola passava um bom tempo ao lado dele conversando. Nunca me interessei em cuidar de plantas, o que até hoje eu não sei fazer, apesar de gostar muito de flores singelas nos cantinhos da minha casa. E ele atenciosamente, parava para me dar atenção. Ele passava a maior parte do tempo de cócoras, bem pertinho da grama e das plantas, e eu me abaixava também para lhe contar histórias, e fazer perguntas. Confesso que andava sempre procurando joaninha, tatu bolinha e taturana e quantas vezes, saía dali misturas perigosas contra meus inimigos feitos das folhas minúsculas do flamboyant, terra, pedrinhas e pedacinhos de grama recém cortados! Tudo era muito explicado para o S. Zé, que às vezes contribuía com algum ingrediente extra.

Um dia, S. Zé foi cortar a grama da casa da minha avó, e não sei bem o motivo, provavelmente era férias, e eu voltei de lá com ele. Fomos para a minha casa de ônibus e me lembro de me sentir bem protegida por ele caminho a fora. Com uma mão, ele me segurava e com a outra, ele segurava a tesoura de jardim, bem embalada em jornal. E competindo com o barulho do ônibus na Avenida Amazonas, eu seguia contando histórias para ele. Ele me fazia sentir uma pessoa bem importante, com grande interesse por tudo que eu falava.

Os anos foram se passando e S. Zé continuava seu trabalho mensal lá em casa. A “birita” dele era sagrada antes do almoço, e mamãe nunca deixava faltar. “É só um copinho pequeno para abrir o apetite”, e esse hábito se manteve até o dia em que fui levar seu copinho, e ele disse que tinha parado de beber. Ele me contou que a D. Geralda, sua esposa, tinha entrado para a Igreja Universal do Reino de Deus, e lá eles falaram que bebida era coisa do diabo. “Ô S. Zé! Não liga pra isso não. Você é um homem trabalhador, não tem problema com a bebida e já traz esse hábito da birita há tantos anos, que não tem problema não. Só uma birita! D. Geralda não vai saber não.” Ele que sempre parava o que estava fazendo para ouvir atentamente quem falava com ele, apoiou a tesoura ao lado dos seu pé, e me disse. “Ô Johanna. Eu sou um homem simples, não tenho muita inteligência não. Geralda começou ir nessa igreja e eu levo ela lá, toda vez que ela quer. Eles falaram lá que televisão, rádio é tudo coisa do diabo, e a gente tem que se livrar de tudo. Lá em casa já não tem mais rádio nem tv. Mas eu fico aqui pensando, não foi Deus que deu a inteligência para o homem para ele construir essas coisas? Mas Geralda ouve o pastor falar e segue as ideias dele. Lá em casa não tem mais.” E assim ele seguiu, sem rádio, sem TV e sem birita. Mas ele seguia sua vida, com o trabalho e com a esposa D. Geralda, que embora fosse 20 anos mais nova, já tinha naquela época uma saúde mais comprometida do que a dele. Ele sempre foi com ela um homem gentil, atencioso, e muito companheiro.

Ele já não vai na minha mãe há tempos, e eu não me lembro qual foi a última vez que vi S. Zé. Mas hoje me deu saudades e liguei para ele. Com 94 anos, lúcido segue sua vida simples ao lado de D. Geralda. No bate-papo ele se lembrou das nossas conversas no jardim e também desse dia que ele me levou para casa de ônibus. Chegou a acrescentar que ele errou o ponto de descer e andamos um pouquinho a mais. E falando em pandemia, da rotina dele, e da saúde, ele me disse que continua magrinho, com alguns probleminhas de saúde, mas que continua dormindo bem. Disse que dorme às 18:00 e acorda às 5:00 para dar os comprimidos da Gê, colocar o colírio na Gê e passar o café para Gê, que cada dia acorda em uma hora diferente. Além da prosa boa, a conversa ficou com gostinho de saudade de um tempo que não volta, mas também em apreciar ao vivo o que a senhora da reportagem havia dito sobre manter um relacionamento tão longamente. O S. Zé e a Gê estão juntos há 60 anos. Ou seja, eu daqui, sem nenhuma bandeira para defender, talvez passe a levantar apenas a da delicadeza, aquela singela feita de atitudes no dia-a-dia. E independente de qual lado cada um esteja em qualquer assunto, eu acredito que é sempre possível se tornar mais delicado.

 

(Esse texto foi escrito no dia 20/08/2020, tempo de pandemia. Hoje é dia 10/12 e acabo de receber a triste notícia da morte do S. Zé. Falei com ele por telefone no dia 21/04/22, dia do seu aniversário. Ele estava muito triste com a morte da D. Geralda em fevereiro de 2022. Disse que tinha perdido a razão de viver. Ainda tive tempo de uma despedida há 3 dias atrás com ele entubado no Hospital João XXIII. E agora ficam as memórias de um homem gentil. Descanse em paz, S. Zé).

Johanna Homann

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Join the discussion 2 Comments

  • Ericka disse:

    Texto tão emocionante! Vc conseguiu retratar com carinho como era o Seu Zé.

  • Rosana disse:

    Texto maravilhoso! Me fez ver que a vida nada mais é do que pequenos gestos de delicadeza!
    Consegui ver S.Zé através das suas palavras!
    A sensibilidade de ver e sentir o outro!!!
    Lindo🌷

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