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Dentro da ambulância, sentindo que seria um dos meus últimos momentos com meu avô, eu não deixava de admirar a beleza do azul vivo dos seus olhos. Ele percebeu que eu o encarava; piscou lentamente e lançou um breve sorriso. Ele me pedia perdão com os olhos, mesmo eu não guardando nada de rancor dentro de mim. A gente tinha o nosso jeito de se relacionar; talvez por sermos pessoas muito parecidas, um implicava com o outro, mas não faltava amor.

 

Esse ano completa vinte e oito anos que ele morreu. Não que eu me lembre disso sempre, mas coincidentemente me lembrei muito dele recentemente e puxei da memória o dia da sua morte – quinze do dois de noventa e dois. A data é sonora, e percebi quando a falei na gráfica encomendando o santinho para a missa de sétimo dia. Hoje, ela marca a distância ao mesmo tempo que me invoca a lembrança do seu cheiro e da sua presença.

“Vóóóóó! Vôôôôô! Chegaaaaamos!” O portão da casa deles ficava trancado, e pra nós tocar a campainha era comedido demais. Eu e minhas irmãs gostávamos de fazer barulho. Minha avó vinha descendo a rampa devagar, e nós acompanhávamos pela greta do portão seus passos que balançavam o vestido e arrastavam o chinelo. Era uma hora que dava briga, já que éramos três para apenas duas gretas. Depois, a briga era para abraçar a vovó primeiro. Ela sorria, adorando ser sufocada por três meninas.

Meu avô nos esperava na garagem, ao final da rampa, mas ninguém competia pra abraçá-lo; ele era distante, mesmo atento ao que fazíamos. Sempre vestido com suas calças escuras, camiseta branca por baixo de uma camisa também branca e suspensórios, ele esticava um braço pro lado e balançava o outro em direção da porta da cozinha, como se não soubéssemos o caminho. Na chegada, ele já corrigia o jeito que eu corria. “Não vá tão depressa, menina!” Sempre na sombra da minha avó, ele a esperava na porta da cozinha, deixava ela passar e acompanhava a nossa agitação a caminho da mesa. Enquanto ela servia o chá de limão com mate que já estava pronto, ele pegava o pote de mel das abelhas que criava. Era delicioso! Mas enquanto eu saboreava, ele dizia, “Não precisa encher a colher”, e aí eu servia um pouco mais. Nessa hora, minhas irmãs com as bocas cheias conseguiam deixar passar por entre os dentes o sabor de serem as preferidas dele.

Além do chá, minha avó sempre fritava ovo em uma frigideira bem pequena, que era também o prato para a última a ser servida, e a gente molhava o pão de centeio que ela fazia na gema mole e amarelinha. Depois de acabar com todo o chá do bule, corríamos pela chácara. Minha mãe gostava muito de conversar com meus avós, mas antes de entrarem em algum assunto, eu já ouvia as recomendações dele, “tem carambola madura; apanhe apenas as que vão comer!” Conferíamos se tinha também abacate, manga ou mexerica maduros. Checávamos se tinha ovos para recolher ou pintinhos novos na estufa. Ao voltar correndo para a cozinha, ele logo dizia para mim, “Não precisa correr.”

— Ai, vôô. Não tô correndo!”

Na adolescência, a marcação foi ainda pior. “Fala baixo. Você não tem mais idade para este short. Come devagar. Mastiga,” além de alertar minha mãe a ficar de olho em mim, pois eu ia dar trabalho. Será que pela teimosia? Nem sei, mas quando ele sugeria alguma coisa, eu fazia simplesmente o contrário: corria ainda mais, pegava mais frutas do que ia comer e usava o mesmo short apertado para ir à casa deles. Ao mesmo tempo que me atacava, ele defendia minha irmã do meio; mandava minha avó servir mais comida pra ela e interferia para eu brincar do que ela queria. Acabei optando por outra estratégia: me mantive mais distante e tentei me passar como invisível. Rancor eu nunca tive, mesmo minhas opiniões não sendo bem-vindas, e acabei ficando mais perto da minha avó.

Porém, aos dezenove anos, era eu quem estava ao lado dele dentro da ambulância, depois de ele ter sofrido um derrame. Ele foi fazer um exame fora do hospital, e eu era a única pessoa disponível e maior de idade pra acompanhá-lo naquela tarde. Eu já sabia que o estado de saúde dele não era bom, e que provavelmente sua vida não seria longa. Ali me deu vontade de ter sido mais próxima dele. Reparei mais uma vez a beleza dos seus olhos, e na situação desconfortável de ser despedida e de estar dentro da ambulância, nossos olhares se tocaram. Se o mundo lá fora fazia barulho, isso não nos importava mais, e ouvi apenas um olhar de perdão e de adeus. Do avô ranzinza, recebi uma prova de amor: esse olhar que eu guardo comigo até hoje.

 

Johanna Homann

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