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Na semana passada, eu fui tirar sangue para uns exames de controle. Lamentei que a espontaneidade com a qual eu estava acostumada a chegar ao laboratório tinha deixado de existir entre as faces meio cobertas com máscaras. Uma funcionária me orientou a pegar a senha, e, a caminho da máquina, esperei uma senhora atravessar, mantendo a distância que a gente acreditava ser a de segurança. Com a senha, me dirigi às cadeiras, atenta para não escolher uma errada, pois tinha as de idosos, que ainda não me queriam, e as que deveriam permanecer desocupadas por exigências sanitárias. Mal me assentei e fui chamada pela atendente: cumprimentos, nomes e dedos ágeis percorrendo o teclado para entrar com todas as informações. Retornei à cadeira. Logo, logo fui chamada para a coleta de sangue.

Um rapaz simpático lançou um “bom dia” bem disposto e já foi logo conferindo meus dados na ficha: nome, idade e rubricas.

—  A senhora está pronta? — perguntou o atendente.

— Claro! — devolvi à altura da sua boa vontade. Suas mãos são leves?

— Sim. Já me disseram que são de fada e também de seda.

— E de anjo, nunca?

— Ah, sim, mas as de anjo são de quando eu ficava no setor de resultado. Era quando confiavam às minhas mãos a notícia de um resultado esperado.

Nessa conversa, lembrei-me da minha avó que sempre dizia, “uma mão lava a outra e as duas lavam o rosto”. Gosto e faço uso dessa imagem sempre quando peço ajuda, sou solicitada ou mesmo em momentos de gratidão: mãos que se ajudam, assim como irmãs inseparáveis. Mas ali naquela hora, eu com o jejum estendido vindo de um outro exame, me sentia zonza e com receio das do rapaz estarem ocupadas enchendo os frascos que ele havia separado. Porém, ele utilizou com muita delicadeza, além da seringa, aquela mangueirinha, tipo uma conexão, para facilitar a troca dos frascos, e então percebi que o peso de suas mãos interferiria pouco no processo. O atendimento foi rápido e saí de lá agradecendo o cafezinho oferecido. Fui logo à padaria onde era certo encontrar um pão de queijo fresco e saboroso.

No caminho, com o braço dobrado, vi de perto minhas unhas sem esmalte: um hábito novo que a pandemia me impôs e acabou ficando. Lembrei-me de uma passagem que li no livro de Coetze[1], no qual a prima dele reflete como lá na África do Sul, os brancos têm o cuidado de manter suas mãos brancas limpas, enquanto os negros ficam com o trabalho braçal. Não senti muita diferença do que temos aqui no Brasil: pessoas negras têm menos chances de fazerem trabalhos mais intelectuais e de pouparem suas mãos. Fiquei confortável por constatar que as do atendente não eram brancas – ele teve chance de estudar e de estar em um trabalho que exige menos força das suas mãos. E na hora me ocorreu que as mãos do meu pai, embora sejam brancas como as de tantos europeus, são pesadas por carregarem pouco estudo e muita realização entre motores e máquinas.

Meu pai sempre defendeu a independência das pessoas e conta com orgulho que aprendeu o que sabe sozinho, sem esperar que ninguém fizesse para ele o que precisava ser feito. Não foi um homem que quando novo teve grandes oportunidades, mas sempre teve curiosidade e determinação para alcançar o que queria. Suas mãos são marcadas por trabalho pesado, tanto de casa quanto da fábrica que ele fundou. Nunca teve empregada doméstica, chegou a fazer seu próprio colchão, firme do jeito que precisava ser para a sua coluna, e também a fundar uma fábrica que fez brotar do zero e da sua paixão por máquinas.

Por outro lado, da família da minha mãe, que é uma mistura de sangue de negros, índios e portugueses, vieram mãos mais leves. Eles sempre tiveram auxiliares trabalhando em casa, mais tempo para dedicar aos estudos, podendo assim ser poupados de trabalhos mais árduos. O nascimento nesta família não garantiu uma vida sem duros desafios, mas houve sim pessoas que romperam com um destino de trabalho traçado pela cor de suas mãos.

Enfim, toda essa divagação com as mãos me traz a ideia de que independente de uma condenação que as cores das nossas mãos possam nos trazer, há sempre um jeito de buscar construir com elas um novo rumo das nossas histórias.

 


[1] “Verão” de J.M. Coetzee
Johanna Homann

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